Fonte: Marcelo Sarsur.
Na primeira vez em que pude ocupar este espaço, escrevi, de passagem, sobre as pesquisas envolvendo substâncias alucinógenas e psicodélicas no tratamento de diversas doenças mentais. Trata-se de campo fascinante e promissor, que merece mais do que apenas uma menção esparsa.
Na coluna de hoje, retomo o tema, trazendo mais evidências dos resultados expressivos encontrados em estudos com estas substâncias. Não se pretende descer às minúcias técnicas das ciências médicas e farmacológicas, mas sim buscar dados acessíveis ao público leigo, disponíveis em meios de comunicação de massa confiáveis.
Antes de se examinar os estudos científicos acerca do tema, cumpre destacar três considerações iniciais: o mercado de drogas para o tratamento de condições psiquiátricas, hoje; a arbitrariedade da distinção entre “drogas lícitas” e “drogas ilícitas”, no direito brasileiro; e as condições para a pesquisa científica com psicodélicos, hoje, no Brasil.
O mercado de drogas para o tratamento de condições psiquiátricas, no mundo, é da ordem de bilhões de dólares americanos por ano. Cifras precisas e confiáveis são difíceis de encontrar, porque dependem da substância e do mercado consumidor.
Contudo, a crescente medicalização da saúde mental não é novidade. Desde o surgimento do Prozac, nas décadas de 1980 e 1990, então intitulada de “pílula da felicidade”, a psiquiatria vem lançando mão de recursos novos, de substâncias que se destinam a disfunções cerebrais específicas, trazendo melhorias de qualidade de vida a inúmeros pacientes, que sofrem de distúrbios tão diversos quanto a depressão, o transtorno de estresse pós-traumático, a desordem bipolar, ou a epilepsia.
Dados do Reino Unido revelam a recente escalada do uso de medicamentos no tratamento de condições psiquiátricas. Cerca de 4 milhões e meio de britânicos fizeram uso de serviços de saúde mental no período de 2021-2022, um aumento de quase um milhão de pessoas em um período de cinco anos; uma em cada cinco crianças e adolescentes, entre 8 a 16 anos de idade, faz tratamento para saúde mental; a cifra sobe para um entre quatro adolescentes, entre 17 e 19 anos de idade.
No Brasil, o aumento é ainda mais expressivo: entre 2017 e 2021, a venda de medicamentos antidepressivos e estabilizadores de humor cresceu 58%, segundo dados do Conselho Federal de Farmácia, apesar do elevado valor dessas medicações num mercado como o nacional.
Não há como se imaginar que o mercado de substâncias destinadas para o tratamento de sofrimento mental seja pequeno, ou esteja em diminuição.
Pelo contrário: são diversas as vozes que alegam existir uma medicalização excessiva dos distúrbios de humor, confundindo-se os dissabores da vida humana com as condições que, de fato, exigem tratamento farmacológico.
Os diagnósticos via redes sociais se tornaram abundantes, e há inclusive um certo desejo de enxergar, em suas próprias contradições pessoais, alguma condição digna de previsão no CID…
‘Lícitas e ilícitas’
A distância entre “drogas lícitas” e “drogas ilícitas” não se situa na substância em si mesma, mas sim em sua inclusão numa ou noutra das Listas da Portaria SVS nº 344/1998.
Nem tampouco a distinção se dá pela capacidade de produzir dependência, ou de causar malefícios ao organismo. Toda substância, quando consumida em quantidade acima da recomendada, pode produzir danos; medicamentos de uso contínuo para tratamento psiquiátrico podem provocar dependência e requerem período de desmame, para seus usuários.
É evidente que não se defende o emprego de substâncias psicodélicas sem os necessários estudos de viabilidade, para se aferir a dosagem, a forma de aplicação, a duração do tratamento e as indicações de uso conforme a condição do paciente. Contudo, os estudos clínicos necessários não serão produzidos enquanto tais substâncias estiverem atrás do manto da proibição, que, por sua vez, não atende a critérios rígidos de lesividade.
Em meio a decisões criticáveis do legislador na configuração da Lei de Drogas, ressaem o acerto e a simplicidade do tratamento conferido às pesquisas científicas com as substâncias ali definidas. O artigo 2º, parágrafo único, da Lei Federal nº 11.343/2006 faculta à União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais precursores de drogas (tidas como ilícitas), para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização.
A autorização de pesquisa deve ser emitida pela Anvisa, a quem compete, ainda, fiscalizar os critérios de pesquisa, bem como a ministração da substância aos pacientes. Por se tratar de pesquisa científica em saúde com seres humanos, os critérios éticos também se aplicam, em especial aqueles previstos pelo sistema CEP/Conep.
Diante de um projeto de pesquisa viável, aprovado pelas instâncias éticas, a Anvisa pode conferir autorização especial para o cultivo das plantas ou fungos e para a extração dos princípios ativos, bem como para seu refino e emprego em posologia para os pacientes.
Como são procedimentos custosos, muitas vezes tais pesquisas devem ser custeadas por instituições de ensino superior, ou por fundações públicas, ou, por fim, por grandes sociedades empresárias. Estas últimas, contudo, possuem menor interesse, porque as substâncias psicodélicas em teste não podem ser objeto de patente específica, ao contrário das moléculas hoje fartamente empregadas para o tratamento de condições psiquiátricas.
Em verdade, dados recentes afirmam que boa parte dos laboratórios de ponta não vem investindo em pesquisas em medicações de uso psiquiátrico — que, apesar de terem vendas elevadas ano a ano, já não mais geram as perspectivas de lucro existentes em campos como os tratamentos oncológicos, ou o controle da diabetes.
Os estudos com a psilocibina, substância extraída dos chamados “cogumelos mágicos”, aumentou em dez vezes num intervalo de dez anos. Busca-se tratar, com ela, a depressão, os transtornos de ansiedade, e a dependência química. Um dos efeitos já documentados foi o combate à dependência em nicotina.
Sintetizada em 1962, a quetamina é empregada, primordialmente, como um anestésico. Como produz uma dissociação entre o corpo e a mente, pode ser aplicada, em doses baixas, na forma de infusão, para o tratamento da depressão, produzindo efeitos quase imediatos.
Ao contrário de boa parte da medicação para o tratamento da depressão, que demora cerca de duas semanas para produzir alterações significativas, o uso de quetamina produz efeitos nas primeiras 24 horas após a sua aplicação. A posologia é de uma injeção por semana, durante quatro a seis semanas, variando de 0,5 ml a 1 ml por quilo de peso do paciente.
Muito combatida enquanto droga sintética, o MDMA, princípio ativo do popularmente chamado Ecstasy, vem sendo aplicado para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (Tept), em especial quando combinado com a depressão e o abuso de consumo de álcool.
O MDMA produziu, em estudos, melhorias consistentes aos pacientes, sem os efeitos colaterais usualmente observados em drogas de uso psiquiátrico, como a ideação suicida ou indícios de dependência.
Num notável estudo duplo cego, 86,5% dos pacientes que receberam o MDMA alcançaram uma redução mensurável na gravidade dos sintomas, sendo que 71% dos pacientes melhoraram a ponto de não mais configurarem o diagnóstico de Tept.
Em contraponto, no grupo controle, que recebeu o placebo, os índices foram de 69% de melhora na gravidade dos sintomas, e de 48% de recuperação a ponto de não mais fazer jus ao diagnóstico de TEPT.
Por fim, volta-se ao início
Quando Timothy Leary, ainda nos anos 1960, exercia seus estudos científicos e sua militância política, no centro da tese estava o LSD, ácido lisérgico, cujo emprego em terapias é indissociável de sua origem.
O professor Leary foi intitulado, pelo presidente Richard Nixon, como “o homem mais perigoso da América” — não só por sua defesa dos psicodélicos, mas porque estas substâncias estavam no centro da contracultura e da contestação do status quo naquele país, em meio a uma guerra incauta e aos conflitos pelos direitos civis de negros, mulheres, pessoas LGBTQI e outras minorias.
Um estudo clínico, supervisionado pela Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos da América (USFDA), demonstrou que uma formulação do LSD, denominada MM120, conseguiu um índice de 48% de cura da desordem de ansiedade generalizada, num período de 12 semanas após o emprego da droga.
A mesma substância conseguiu, num intervalo de três meses, a redução significativa dos efeitos da ansiedade em 65% dos pacientes. Os estudos, contudo, tardaram a ocorrer — em 2022, haviam passado mais de 40 anos desde o estudo mais recente com o LSD. Leary, afinal de contas, tinha razão.
Muito ainda não se sabe acerca dos funcionamentos do cérebro humano. A influência de substâncias psicotrópicas pode estimular a plasticidade cerebral, e, em conjunção com outros tratamentos, pode levar à superação de traumas, de sofrimentos mentais severos, que hoje não encontram tratamento eficaz no âmbito da psiquiatria.
Apenas a pesquisa científica séria, despida de preconceitos, pode produzir conhecimento seguro acerca da potencialidade dos psicodélicos ou de outras substâncias, que podem ser coadjuvantes úteis no tratamento de condições psiquiátricas.
É chocante, contudo, perceber como o risco de dependência futura parece ser mais grave, aos olhos de parcela da sociedade, do que o dano atual sofrido pelo paciente. O alívio do sofrimento mental, que é tão real quanto qualquer outra doença que afete a dimensão corporal do paciente, demanda a superação dos preconceitos e um cálculo realista de custo e benefício.
Interditar o uso de determinadas substâncias que, comprovadamente, possuem efeitos terapêuticos, apenas pelo temor de dependência química, é trocar a certeza de melhora pelo fantasma do vício. Ciência e luzes hão de prevalecer sobre medo e obscurantismo.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-abr-05/terapias-com-substancias-psicodelicas-promessas-e-percalcos/