Reflexões sobre a parentalidade

Nos tempos do sinal verde para as relações amorosas casuais, rápidas e intensas, a decisão sobre parentalidade exige sinal amarelo.

Por Dra. Alcina Barros –

As mudanças trazidas através da internet, na velocidade da transmissão de informações, no modo de aprender, se apresentar ao mundo e de se vincular, entre tantas outras, permitiu que as pessoas estabelecessem contatos tanto com sujeitos de locais próximos, quanto distantes e remotos. Conhecer alguém passou a ter um novo significado, não necessariamente envolvendo ter contato presencial e convivência por um período de alguns anos. Redes sociais e aplicativos permitem conexões variadas, resultando em baixíssimo limite de tolerância à frustração, pois a troca ou o cancelamento de interesses/amigos/parceiros é mais fácil e está ao alcance de poucos clicks. O título de um hit da cantora pop Ariana Grande resume com acurácia o que quero dizer: “Thank u, next”! 

Venho propor pensarmos juntos sobre Medicina Preventiva, em 2024. Aqui não falaremos de doenças físicas, clínicas, mas de situação que se não devidamente refletida e ponderada pode resultar em sérios problemas emocionais, de longa duração e transtornos mentais nos envolvidos: a decisão voluntária e consciente de se tornar pai ou mãe. Com os métodos contraceptivos sendo de conhecimento geral, ter filhos é uma escolha, a menos que a situação seja resultado de ato criminoso, por isso existe uma conexão temática com prevenção. 

A parentalidade está intrinsecamente ligada ao conceito de se sacrificar pelo outro, possibilitando o crescimento e desenvolvimento infantil saudável. Muitos pais e mães dizem abertamente que morreriam por um filho, doariam seus órgãos a eles em caso de necessidade, mas esses exemplos são raros e não representam o sacrifício que abordo. Chamo a atenção para a compreensão de um adulto sobre se dedicar integralmente a outra pessoa, abrir mão de horários livres, sono, descanso, prazeres cotidianos, viagens, programas divertidos, adiar sonhos, reordenar a vida para atender às necessidades de alguém, sem data de expiração. Ter espaço interno para acolher, acalmar, escutar, entender, corrigir, educar, suportar, abrir mão por amor à criança, refletir sobre erros cotidianos, tentar se corrigir e melhorar sempre. 

John Bowlby, aos 81 anos, no final da já longínqua década de 80, nos escreveu que o poder de homens e mulheres que se dedicavam à geração de bens materiais era valorizado em nossa sociedade, enquanto o poder deles relacionado à criação de “crianças felizes, saudáveis e autônomas”, em suas casas, não recebia valor, contribuindo para um mundo perturbado. De lá para cá, essa observação realizada pelo estimado psiquiatra inglês está ainda mais atual. As pessoas não buscam apenas uma vida material mais abastada, mas se esforçam por apresentar um status de bem-estar e sucesso no mundo digital, passando muito tempo olhando para telas, ao invés de olharem para aqueles ao seu redor: sinal amarelo. 

O sinal vermelho deve ser aceso se houver qualquer tipo de pressão ou pressa na decisão de ter filhos. Após tê-los, não há devolução. E se for tê-los dentro de um modelo de casal, ambos devem se conhecer bem, ter respeito e consideração mútuos, saber como o par se relaciona com seus familiares, amigos, colegas de trabalho, quais valores considera importantes, os limites éticos, como lida com momentos de dificuldades. 

Vemos, com frequência, adultos dividindo a atenção entre conteúdos do celular e as brincadeiras ou comunicação com suas crianças. Ademais, quando relações rápidas, idealizadas e superficiais resultam em filhos, os integrantes do casal podem não suportar os novos papéis e responsabilidades e se separam. Divórcios amigáveis envolvendo guarda e convivência familiar dos filhos não correspondem à regra. Como psiquiatra forense, minha amostra é superespecializada, mas depois de 15 anos de prática, a observação direta me permitiu  verificar que “o melhor interesse da criança”, em determinados casos, tende a se tornar submerso em um mar de intrigas, interesses individuais, acusações e desvalorização mútua entre os pais. A criança parece esquecida por aqueles adultos. Crescer presenciando os pais se agredirem verbal, psicológica ou fisicamente, ou sendo negligenciada emocionalmente têm grande potencial de gerar sequelas e cicatrizes profundas no mundo interno desses pequenos. 

Repito: amar os filhos requer sacrifícios. Diariamente, os pais devem buscar realizar as melhores escolhas para o bem-estar das crianças, abrir mão de interesses individuais (incluindo ressentimentos pelo outro genitor), reaprender a olhar para as crianças, escutá-las, brincar com elas, usando os objetos e espaços ao redor (descobrindo a pracinha do bairro, o playground do condomínio, o campo de futebol), dar espaço para a fantasia, contar estórias divertidas criadas na interação, se permitir sair das telas, priorizar o aqui e agora real. Quando esses aspectos são esquecidos, adultos e, principalmente, as crianças irão sofrer. 

Deste modo, na curta e curva estrada da vida, ficar atento aos sinais amarelos e  vermelhos é mandatório, para não se atropelar outras vidas e não produzir danos à própria. 

 Bowlby J. Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre: Artmed, 2024.

 

Sobre a autora: Psiquiatra, especialista em Psiquiatria Forense pela AMB e UFCSPA, doutora em Psiquiatria pela UFRGS

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